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terça-feira, 3 de março de 2009

O pesadelo dos exilados angolanos


Texto de: José Kalunsiewo Nkosi - Bacharel e licenciado em Ciências Sociais, Mestre em História Política e Doutorando em Psicologia Social (PPGPS / UERJ) - retirado de http://www.polemica.uerj.br/pol18/cquestoesc/contemp_4.htm

Embora a colonização em si seja considerada uma das principais causas da diáspora angolana, a guerra civil angolana - que começou antes mesmo da independência oficialmente proclamada no dia 11/11/1975 - foi a que mais provocou o êxodo dos angolanos pelo mundo, notadamente no Brasil. A impossibilidade de uma vitória militar foi apenas o reflexo da guerra fria em terras quentes africanas. Com isso ficou claro também que as pregações soviéticas e norte-americanas sobre a ideal sociedade angolana eram discursos vazios, longe da realidade e dos verdadeiros interesses dos angolanos, já que não priorizavam a paz.

No Rio de Janeiro, a população angolana aumentou significativamente a partir de 1992, ano em que a guerra civil chegou a Luanda, capital de Angola, depois das únicas eleições 'livres', isto é, do primeiro sufrágio universal. A vitória do MPLA - Movimento Popular da Libertação de Angola - sobre a UNITA - União Nacional pela Independência Total de Angola - embora sob o escrutínio da ONU, não impediu o retorno da guerra civil angolana.

Na terra de asilo, o exilado é sempre o 'outro', que ora é desprezado ou infantilizado, ora é odiado como invasor ou concorrente - no mercado de trabalho, por exemplo. Nessas condições, parece verdadeiro também o inverso da máxima de Sartre que afirma que "o inferno são os outros".

Ora, os exilados são sempre os outros porque são diferentes. Essa xenofobia - em relação aos outros, isto é, aos que são diferente de nós - só termina quando nos reconhecemos todos como estrangeiros. O estrangeiro, como diz Kristeva (1994), está dentro de todos nós. Ele é a face oculta da nossa identidade. Quando os nativos reconhecem que eles também são de certa maneira os outros, os refugiados e outras minorias ou categorias diferentes deixam de ser adversários ou ameaças. Eles continuam sendo apenas diferentes.

O exílio não deixa de ser, antes de tudo, um castigo, uma punição, uma condenação por afastar-se ou fugir da sua convivência social. Embora possa parecer menos doloroso de se estudar, é uma experiência difícil de ser vivida. O exílio é sim uma ruptura, uma fratura incurável entre um ser humano e o lugar em que nasceu, cresceu ou foi criado; entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada.

Muitas vezes o exilado vive um dilema enquanto se encontra na terra de asilo. Por um lado, ele é considerado como alguém que abandonou sua pátria, ao invés de lutar por ela. Por outro lado, ele é considerado um herói por conseguir se adaptar a viver - ou sobreviver - em terra estrangeira, num contexto alheio a sua realidade costumeira. Razão pela qual a literatura e a história sobre o exílio estão repletas de episódios heróicos, românticos, gloriosos e até mesmo triunfais sobre a vida dos exilados.

Os exilados angolanos no Rio de Janeiro têm experimentado essa experiência da maneira mais dramática nas favelas, no contexto da criminalidade que envolve esses lugares que, para eles, são outros 'tristes trópicos'. Enquanto esses jovens exilados empenham seus esforços para vencer em diversas áreas da vida cotidiana - o que é, de certa forma, uma maneira de superar a dor mutiladora da separação da terra e culturas de origem - eles devem, sobretudo, convencer e provar a todos que estão a seu redor que não são criminosos, colaboradores de bandidos, traficantes de drogas etc.

A situação complica-se mais ainda quando são considerados não apenas como simples criminosos - o que não deixa de ser absurdo - mas, principalmente como especialistas que ministram treinamento de guerrilha urbana aos bandidos dos morros e favelas do Rio de Janeiro. Esse mito de 'angolano-bandido', 'angolano-traficante' e 'angolano-instrutor de bandido' torna os angolanos, aos olhos dos policiais, como pessoas mais perigosos que os bandidos que a polícia carioca costumeiramente enfrenta

Como no Brasil e particularmente no Rio de Janeiro existem muitas facções criminosas que lutam contra a polícia e entre si, os exilados angolanos residentes nessas comunidades dominadas pelo tráfico de drogas se tornam alvos fáceis e perseguidos por todos. No complexo da Maré, por exemplo, onde está atualmente a maior comunidade dos angolanos no Rio de Janeiro, estão presentes três facções diferentes, a saber: o Comando Vermelho, o Terceiro Comando e os Amigos Dos Amigos.

Diante desse estigma de angolano ser sinônimo de instrutor de bandido, eles são quase sempre perseguidos pelos policiais, sendo revistados em todos os instantes pelo simples fato de serem angolanos.

O pior é que o exilado angolano que foi morar nessas comunidades principalmente por causa de suas condições financeiras, torna-se alvo de todos. Enquanto o estado de natureza hobbesiano mostra a guerra de todos contra todos, os angolanos exilados no Rio de Janeiro são vistos como suspeitos tanto pelos policiais como pelos bandidos de diferentes facções.

A discriminação que sofrem esses angolanos e o perigo de vida sempre presente no seu dia a dia dificultam o que Berger & Luckmann (2004) denominam de socializações secundárias. Estas que, por sua vez, são responsáveis para a adaptação e inserção social - no caso dos exilados - na terra de asilo. Essa complexidade de socialização do exilado os condiciona a continuamente traduzir todas as experiências do dia-a-dia. Por ser um produto da diáspora, os estrangeiros em geral e os exilados angolanos em particular, precisam aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas.

De acordo com as entrevistas que me concederam, os angolanos que moram nesses locais onde existem mais de uma facção dominante, são alvos de todos. Embora a maioria desses exilados seja formada de pessoas que saíram de um país em guerra em busca da paz, não querendo portanto envolver-se em conflitos de qualquer ordem, eles se tornam quase alvos de todos os bandidos.

Não parece muito difícil entender a lógica desses bandidos baseada no mito de 'angolano-instrutor de bandido'. O pensamento é que se o angolano é criminoso como eu e não faz parte da minha facção, logo pertence à facção inimiga. Se ele pertence e treina os membros da facção inimiga, então ele é meu inimigo e é perigoso.

Já podemos, a partir desses relatos, imaginar quais perigos correm esses angolanos na terra de asilo, terra de onde sonhavam encontrar a paz. A terra do sonho da paz continua sendo uma terra de guerra. Primeiramente porque a guerra entre bandidos e policiais ou entre os bandidos de facções inimigas é uma realidade nessas comunidades. Para nós, angolanos exilados nos morros e nas favelas de Rio de Janeiro, a guerra do tráfico ou contra o tráfico - aliás, pouco interessa porque - se tornou uma guerra de todos contra nós. O sonho não aconteceu. O pesadelo da guerra que forçou o desterro, o desenraizamento, o exílio, infelizmente continua na 'terra de asilo'.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Denise Rollemberg Cruz. Exílio: entre raízes e radadares. Rio de Janeiro: Record, 1999.

Edward Said. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

Julia Kristeva. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

Peter L. Berger & Thomas Luckmann. A Construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 24.ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

Stuart Hall. A Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Editora DP&A Editora, 2004.

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